Por mor de aprender o vira
Fui traído. Mas por fim,
Sei hoje, que era a mentira
Que então chamava por mim,
Nada haverá que me acoite
Meu amor, meu inimigo,
E aceito das mãos da noite
A memória por castigo.
A “locução poética”, actualmente pouco usuada, tem o sentido de “por via de”, “por causa de”, ou melhor dito, “por amor a ...” à aprendizagem da dança do “vira” – como diz o poeta: “fui traído”.
A paixão, a dedicação a qualquer coisa, pode levar-nos ao esquecimento de outra, ou, outrem. Implicitamente pode dar origem à sua negação, devido a uma orientação contrária. E, deste modo, surge o confronto de opostos ou contrários, implicando a alternância: “uma coisa ou outra”; ou, a permanência na sua contradição já que uma coisa faz parte da outra.
Mas, o facto de se dedicar-se à “paixão da dança” e de ser seu aprendiz, não quer dizer que esqueceu o seu amor por alguém. E, se o poeta reconhece que “era mentira” aquilo que lhe diziam, todavia era aquilo que ele sentia.
A traição está subjacente a este conflito entre dedicar-se a alguém, ou, seguir um outro caminho. No fundo, qualquer coisa “chamava por mim” como dois amores concorrentes, em que um é mais forte do que outro, mas ambos fortes.
A dicotomia de “meu amor, meu inimigo” entrelaça esta ausência de alguém que se dedica à dança, e, por ela se enamora, mas, ao mesmo tempo, se esquece de outro compromisso.
A dicotomia de “meu amor, meu inimigo” entrelaça esta ausência de alguém que se dedica à dança, e, por ela se enamora, mas, ao mesmo tempo, se esquece de outro compromisso.
Por isso, a noção de “castigo” por ter descoberto “algo” é a transgressão de um segredo reservado aos deuses, que merece punição. A implícita figura de Prometeu que desvenda o segredo, o tenta comunicar, e que arrasta consigo esta “punição” da sua paixão da dança.
As trevas, a escuridão, que as “mãos da noite” conservam, que à luz não se podem revelar, encerram “a memória por castigo”.
A pena, a condenação poética é um castigo que carrega nos seus ombros. Por um lado é “meu amor”; por outro lado é o “meu inimigo”, e, estas duas coisas quase inconciliáveis permanecem como sinal da sua transgressão.
A simplicidade aparente dos versos entra na linha do conjunto do poema ou do fado. Este fado é uma exaltação da transgressão.
O fascínio da dança é uma espécie de feitiço, ao qual o enfeitiçado não pode fugir. E na dança está presente a música, o movimento, a sua sensualidade. Já o célebre filósofo F. Nietzsche dizia que o poder da música é superior à força dos conceitos.
Nada haverá que me resguarde, me proteja deste castigo, ou, desta condenação, porque ela traduz a minha condição, sejas tu, meu amigo, meu inimigo.
Será, exaltação daquilo que as pessoas têm direito?
É necessário roubar a felicidade aos deuses, que vivem no seu “eterno conforto do seu Olimpo”, já que a “alegria de vida” aos humanos lhes foge, ou, lhes foi negada.
E, parece que a via da transgressão se apresenta como parte da solução, do dilema que circunda e envolve o poeta, nesta dialéctica de “ser” e de “não ser”, que somente o movimento da dança encerra como “memória por castigo”.
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