A Crise no Reino da Galiza (Cap.II).
A Morte Trágica de Sancho
A trágica morte do rei Sancho II (956-966), marca, de forma indelével, a divergência entre a Galiza do Norte e a Galiza do Sul, ou seja, a crescente afirmação e autonomia do Condado portucalense.
Cabe aos autênticos historiadores demonstrar aquilo que desenvolvemos como a tese mais aceitável, já que os nossos intentos rodopiam numa epopeia considerada ultra-periférica, que se afasta dos cânones de uma autêntica investigação histórica.
O reino da Galiza enraíza-se no antigo reino dos suevos que ocuparam o Noroeste peninsular pelo ano de 409, e, que durante duzentos anos permaneceram nesta região, sendo absorvidos pelos visigodos, quando estes se converteram ao catolicismo, sob a influência do seu soberano mais famoso Leovigildo (568-585). A influência dos visigodos sobre o reino dos suevos, conquistado em 585, durou pouco tempo, pois em 711, os árabes ocupam a Península Ibérica.
Todavia, o reino da Galiza oscilava entre a sua legítima ambição de independência, e, o poder exercido pelos reis de Leão. As tensões e rivalidades entre os senhores galegos e os defensores de Leão eram constantes, não obstante, convém salientar que as capitais do reino dos suevos se situaram na Galiza do Sul, e, repartiram-se pelo Porto, Braga e Tui.
A morte de Sancho I envolve duas teses que permanecem enigmáticas acerca deste problema ou acontecimento.
Certas fontes portuguesas relatam que este acontecimento terá ocorrido em terras portucalenses, aquando de uma visita de Sancho I, rei de Leão, a Coimbra, que dá origem a uma crise de governação nos territórios galegos, ainda que o poder régio dependesse do apoio dos nobres e senhores que governavam as cidades e vilas, de quem a eleição deste monarca tinha estado sujeita, por duas vezes. Aliás, a visita de Sancho I a Coimbra teria como objectivo, não só exigir os direitos de vassalagem de Conçalo Mendes (Conde de Portugal, desde o ano de 950), mas também estabelecer acordos de tréguas com forças árabes, como, por várias vezes, aconteceu durante o seu reinado.
Outra versão, de origem galega, relata que após uma revolta do Conde Gonzalo Sanchez, o rei Sancho I teve de intervir para sufocar esta rebelião, estabelecendo um acordo com este conde. Após este apaziguamento, o conde Gonzalez oferece ao rei umas maças envenenadas, que são a causa da sua morte. Ora, segundo a versão galega, este encontro teve lugar em Santiago de Compostela, após o qual o rei Sancho I dirigiu-se para um “Castelo do Minho”, onde veio a falecer. Os seus restos mortais foram transladados para a Igreja de São Salvador, na cidade Leão, onde jazia o seu pai e irmão.
Os traços da viagem de Sancho I, quer seja de Coimbra para Santiago de Compostela, quer seja desta cidade para a região do rio Minho permanecem num certo mistério. Tal como num certo enigma permanece a causa da morte de Sancho I, já que o seu falecimento por causa das “maçãs envenenadas” se deve, provavelmente, a uma forma camuflada de qualquer cilada ou emboscada, perpetrada por forças vikings. Aliás, numa certa tradição viking evoca-se a morte ou a queda de alguém, através do recurso simbólico de comer “uma maçã envenenada”, como sinónimo de que foi atingido por uma seta viking, desferida por qualquer archeiro. Se, por outro lado, a morte de Sancho I, acontece nas proximidades de um “Castelo do Minho”, poucas dúvidas restam, que este monarca foi alvo de algum ataque viking.
Portanto, seja por acção directa do Conde Gonzalo Sanchez, da Galiza do Norte, seja por acção indirecta de Gonçalo Mendes, de Coimbra, ou, mais provavelmente, por uma emboscada ou cilada viking, os acontecimentos posteriores serão marcantes das divergências entre o futuro condado portucalense e uma Galiza, cada vez, mais dependente e aprisionada do poder de Leão.
Geralmente, o rei medieval não usufrui dos privilégios concedidos ao rei monarca, nem detém os atributos de um poder soberano: ou seja, não dispõe de um poder legislativo que abarque a totalidade do seu reino, numa sociedade dominada pelos costumes locais. Além disso, não recebia impostos sobre a totalidade do seu reino, nem conseguia, facilmente, formar um exército de âmbito nacional.
O rei medieval é um senhor entre outros senhores, que não escapava à ambição e ao poder de outros magnatas. E, tal como os demais senhores administrava o seu território, fazia justiça segundo os usos e costumes, defendia os seus súbditos, e, recebia os foros pagos pelos seus vassalos, maioritariamente, em produtos agrícolas, ou, doação de animais.
Na corte de Leão, por vezes, o rei era tratado como imperador, suserano dos suseranos, ou, rei dos reis, já que marcado pela santa unção, se torna no árbitro dos conflitos políticos e religiosos, ao mesmo tempo que assume a defesa do reino, e, por isso, tem o poder de exigir auxílio militar aos outros senhores.
Os laços pessoais, de homem para homem, eram muito importantes. Os compromissos de fidelidade vinculavam os homens entre si, ou, entre o vassalo e o seu senhor. Quase toda a sociedade se estruturava em laços pessoais, estratificando-se em classes, famílias, ou, liderança pessoal. Deste modo, os laços pessoais originam alianças, constantemente renováveis, para que qualquer contrato perdure, já que o menor incidente dava origem à renovação desse contrato.
Normalmente, as guerras e os combates medievais resultavam desta complexa teia de intrigas, cuja trama complexa advinha de compromissos pessoais, selados civil ou religiosamente, cujas normas derivavam dos costumes e tradições sociais e religiosas das comunidades.
Por duas vezes, Sancho I foi eleito rei, manobrando o seu poder entre os diversos poderes da nobreza, fazendo alianças com os seus inimigos – os árabes, e, curando-se da sua obesidade por um médico muçulmano.
A emergente aristocracia da Galiza do Sul origina a constituição de poderosas famílias, unidas por laços de parentesco e solidariedade, que, rapidamente, reivindicam uma autonomia crescente sobre os seus territórios. A proclamação do condado de Portucale, por Vímara Peres, em 868, e, a década do reinado de Ramiro II, entre 920 e 930 contribuíram para a consolidação de um território que, pouco a pouco, procurava emancipar-se da tutela, não só do poder régio de Leão, como também da influência dos magnatas da Galiza do Norte.
Além disso, a rivalidade entre esta pretensa nobreza, repleta de infanções, ou, candidatos a nobres, contra a nobreza da Galiza do Norte, mais favorável ao poder de Leão, ou, às pretensões da diocese de Compostela, originará clivagens que perdurarão imersas em contínuas disputas.
O rei medieval tornava-se refém deste jogo de poderes entre os grandes senhores, cujo poder económico e militar, por vezes, lhe era superior. Portanto, tanto o reinado de Sancho I, como a sua morte, estão implicados nesta trama de intrigas e jogos palacianos.
A ameaça árabe
O enigmático episódio da morte de Sancho I revela as constantes negociações a que este monarca estava submetido, tanto com o poder das forças árabes, como também com os acordos e direitos de vassalagem, celebrados com os senhores e magnatas da Galiza.
A aristocracia galega caracterizava-se pelo comando da terra, que detinha por linhagem ou herança, ou, algumas vezes, que possuía em nome do rei, pela gestão da honra familiar e defesa de classe, e, pelo poder militar, económico e judiciário, que exercia sobre os seus vassalos. Os vassalos prestavam homenagem aos seus senhores, a quem juravam fidelidade, em troco de protecção. Além disso, os senhores gozavam do direito de fazer guerra privada: ou seja, o direito de um grupo, ou, homem de se vingar de uma ofensa sofrida, e, de obter uma reparação, ou, simplesmente um duelo.
De igual modo, a igreja se organizava pela construção de mosteiros fortificados, que funcionavam como castelos e vilas, à semelhança dos magnatas galegos, em que a intromissão do poder religioso e civil se misturava conforme as circunstâncias. Por outro lado, os mosteiros elegem-se como autênticos centros de saber religioso, social, e, agrícola, onde se estabelecem relações estreitas com as populações. Além de locais de oração, tornam-se em escolas de instrução do cultivo da terra, cujo exemplo é dado pelos próprios monges.
A sociedade medieval é essencialmente agrícola e rural, apegada à terra, de cujo sustento vivia; e, permanentemente, confinada ao seu território.
Perante esta sociedade hermeticamente fechada sobre si mesma pairava o “terror sarraceno”, como se dizia naquela época.
O império de Al Andaluz dominava, quase por completo a Península Ibérica, restando somente, ao Norte da Península, vários reinos de débil afirmação, como seja o reino de Leão ou Navarra. Além disso, dentro do reino de Leão, a emancipação da Galiza tornava-se num acontecimento constante, reivindicando a sua autonomia, afirmando-se como reino, governado pelos seus reis. É justo e digno falar de um reino da Galiza, dentro de uma lógica, em que o autêntico rei de Leão usufruía, por vezes, do título de imperador, cuja suserania implicava o consentimento de outros soberanos.
O territórios que faziam fronteira com o Andaluz, viviam, permanentemente, na iminência de guerras e combates, sucedendo-lhes ataques e roubos, conluios de pactos e asilos de frágil consistência, sendo o papel desempenhado pelos senhores de Coimbra e Viseu, de extrema importância, já que estavam continuamente dependentes destas ofensivas árabes, e, cujos domínios se estendiam, quer ao rio Mondego, quer ao rio Douro, obrigando-se a acordos estratégicos de fraca duração, que implicavam a cobrança de tributos e impostos.
Todavia, este contínuo confronto fortalecia, cada vez mais, um sentimento de autonomia, em que a figura de Gonçalo Mendes emerge. Os laços sociais e políticos entre a regiões do Porto e Coimbra adquirem novos vínculos, a que se juntam as ambições dos prelados de Braga.
A morte de Sancho I simboliza o corte umbilical com uma Galiza do Norte, mergulhada numa certa penumbra política, embora se renove em certos aspectos culturais e religiosos.
Como relatam alguns historiadores, mais regionalistas ou nacionalistas, o reino da Galiza sofre um período de Interregno, entre os anos de 967-980, sendo regido por uma assembleia de bispos e nobres. As divisões políticas entre uma Galiza mais pró-compostela, e, uma Galiza mais meridional, ainda não são muito acentuadas, mas, pouco a pouco emergem rivalidades entre os vários senhores portucalenses e galegos. A morte do rei Sancho I, quase em nada afectou esta relação de poderes, alias, pelo contrário fortaleceu ainda mais as suas ânsias de independência e desenvolvimento, cuja população dependia, portanto, da acção militar dos comites e dos senhores eclesiásticos, do que da incipiente centralização régia.
O Jovem Rei Ramiro
Após a morte de Sancho I, os conflitos políticos entre Leão e Galiza originam clivagens de governação, que dão origem à constituição de uma assembleia de nobre e bispos, no Noroeste Peninsular, que se encontra disposta a gerir os assuntos do seu reino.
Os magnatas e senhores galegos invocam e colocam em causa a linhagem de Ramiro, além de que não estão dispostos a aceitar a menoridade de um rei, cujo governo dependia da tutela e interferência nos negócios políticos de sua tia, a abadessa Elvira Ramirez. A mãe de Ramiro, Teresa Ansurez, tornara-se monja, após a morte de seu esposo, Sancho I.
As ambições de governação de Elvira Ramirez tornaram-na, efectivamente, uma rainha, assumindo os destinos do reino de Leão, e, celebrando tratados com as forças árabes, para que os seus territórios permanecem livres das suas investidas e saques. O jovem rei, somente, com a idade de onze anos viria a ser considerado soberano.
Entretanto, o reino da Galiza, dependente de uma assembleia de nobres e bispos, gozava de uma autonomia bastante forte, preocupado com os assuntos religiosos de Compostela, de olhos postos na permanência de um invasor, cujos intentos se mantinham ocultos, mas cuja estadia ecoava pelos mais diversos territórios.
Tal como no Sul de Espanha, após o colapso do reino visigótico (batalha de Gaudalete, em 711), e que permitiu a sua conquista pelos árabes, as lutas pelo poder entre facções nobiliárquicas, ou, entre nobres e senhores perduram nos territórios da Galiza do Norte e da Galiza Meridional. De forma que o poder régio era pouco consistente, dependendo do apoio destes nobres.
À falta de um real centralismo monárquico, o poder dos nobres galegos e portucalenses afirmava-se como o verdadeiro baluarte na defesa dos ideais e da cultura católica, no plano administrativo, militar e judiciário.
É de salientar que esta débil e pretensa historiografia retracta a chamada «periferia» do mundo medieval, o Noroeste Peninsular, cuja triangulação rodopia no poder emergente dos senhores portucalenses, no domínio influente dos senhores da Galiza do Norte e na dependência insubmissa ao poder régio de Leão, tendo como referência e paradigma as forças europeias: o império romano do Oriente – Constantinopla, o domínio e a civilização muçulmana – Al Andaluz, e, a influência papal de Roma sobre o Reino dos Francos e da Saxónia.
A crise de governação nos territórios da Galiza, que perdura durante treze anos, temporiza-se com a ainda mais periférica acção militar e guerreira de Viking Gunderedo sobre as costas marítimas galegas.
Um novo “terror” pairava sobre as indefesas costas galegas.
Embora considerado por algumas “fontes”, como o último ataque normando, esta invasão sob o comando de Viking Gunderedo é, sem dúvida, a mais terrível, extensa e consolidada, sendo considerada por diversas fontes, como a grande invasão, alguma vez, realizada sobre a Galiza.
Desde já, registamos uma versão árabe, que atribui, hipoteticamente a terceira invasão da Galiza, considerada como tal, como sendo o “último ataque normando”, na pessoa de Viking Gunderedo, o que não corresponde totalmente aos factos, como posteriormente, procuraremos explicitar.
“Un último ataque normando a España se menciona el año, durante el reinado del califa Hakam II (961-976): aunque la “Primera Crónica” en el capítulo 726 dice que esto ocurrió el año en que murió su padre, el gran Abdurrehamãn III, lo que fechará cinco años antes y bajo el reinado de Ramiro III de Léon” (1)
Nesta época, a regente do reino de Leão, a abadessa Elvira Ramirez, acaba de celebrar um tratado de paz, Al-Hakam II, precisamente no reinado deste califa de Córdoba tem lugar a famosa expedição de Viking Gunderedo.
A hegemonia de Compostela
Por volta do ano de 813, a descoberta do túmulo de São Tiago, nos arredores de Iria Flavia, originou uma reviravolta no domínio do poder religioso, cujo apogeu reverteu na nova constelação religiosa, ou seja, Compostela, e na decadência do papel exercido pela “arquidiocese primaz” de Braga, interlocutora directa do poder papal.
A origem do túmulo do famoso apóstolo São Tiago, está encoberta num nebuloso mistério. Serão, realmente, os restos mortais do apóstolo, que se encontram no seu santuário? Como chegaram as suas ossadas, ou, o seu corpo, do Oriente até às terras galegas? Existirão outras circunstâncias de ordem histórica ou geopolítica que determinaram esta descoberta?
Efectivamente, o apóstolo São Tiago foi decapitado no tempo de Herodes Agripa, sendo os seus restos mortais, recolhidos pelos seus discípulos, e, introduzidos num barco, tendo sido conduzidos até à Galiza, segundo consta a lenda.
Segundo idêntica narração, a descoberta do seu túmulo deve-se ao eremita Pelayo, que avistou uns misteriosos relâmpagos, [de cuja etimologia advém Compostela, ou seja, da forma latina “Campo de Estrellas”], e, a cujas notícias não resistiu “Teodomiro”, bispo de Iria Flavia, a quem se atribui esta proeza.
Ora, os reinos católicos do Norte de Espanha debatiam-se com a ameaça eminente das forças árabes, a que não eram alheias as expedições vikings.
A invasão de Tárique, em 711, a famosa incursão árabe na Península Ibérica, originou a queda da Espanha visigótica e da sua monarquia, subsistindo os territórios do Norte da Península. Na noite de 27 para 28 de Abril de 711, Tárique, Governador de Tânger, desembarcou em Espanha com cerca de sete mil homens, tendo a sua favor as constantes lutas de poder entre várias facções nobiliárquicas. O ano de 711 assinala o fim do domínio visigótico na Península Ibérica, praticamente, após a morte do rei Witiza, em 709. Por volta do ano de 714, as forças árabes fazem as primeiras incursões nos territórios da Galiza Meridional. Ainda que, a Galiza estivesse sob domínio dos Suevos, que conjuntamente com os visigóticos ocupavam as duas antigas províncias romanas: “Gallaecia” e “Lusitaniae”.
Todavia, os cristãos do Noroeste Peninsular, sobretudo a província da Gallaecia, tentavam resistir às suas investidas, recusando pagar qualquer tributo aos invasores, ao mesmo tempo que tentavam criar uma monarquia de tipo visigótico. Nos anos de 722 a 737, Pelágio torna-se o primeiro chefe das Astúrias, no reino Oviedo-Leão, embora em certa cronologia galega se estabeleça como rei Paio (718-737), sucedendo-lhe o seu filho Fabila, neto de Fabila de Tuy, entre 737-739, coroando esta tentativa monárquica em Afonso I - O Católico – (739-757), que recupera os territórios galegos até às margens do rio Douro.
O domínio árabe no Sul da Península era de certa fragilidade demográfica, já que somente 1 a 2% da população total pertencia ao contingente dos conquistadores, o que não impediu de construir uma civilização de grande influência cultural e militar. Por isso, desferiram esporádicas incursões que , de tempos a tempos, causavam grande terror nos territórios do Nordeste Peninsular. Por outro lado, os cristãos do Norte fortaleceram-se com as sucessivas vagas de emigrantes provenientes dos territórios ocupados pelos muçulmanos, ao mesmo tempo que estabeleciam armistícios e alianças esporádicas com os árabes, coroando com uma “embaixada régia da Galiza”, em 965.
No entanto, raros eram os períodos de paz, devido à constante ameaça árabe, no Noroeste Peninsular, às lutas constantes entre os senhores da Galiza, e à iminente expansão viking.
A descoberta do túmulo de São Tiago criou uma dinâmica religiosa, que nos anos de 830 permitiu ao arcebispo Gelmires afirmar-se, não só, como chefe religioso, como também, chefe político. O clero e os nobres da Galiza do Norte encontraram uma razão colectiva de ser, um ideal histórico, cujo centro gravita no túmulo do apóstolo Santiago. A principal razão do seu poder advinha de uma matriz religiosa que insuflava os ânimos nos combates de intensa bravura contra as forças árabes.
Santiago torna-se no centro da cristandade do Norte de Espanha, tal como um formidável luzeiro que ilumina os corações dos cristãos, enchendo de esperança e coragem na luta contra os muçulmanos.
Santiago torna-se no autêntico símbolo religioso do combate contra os árabes, elegendo-se e invocando-se como o “Matamouros”.
“Mouro” é sobretudo, o “ infiel”, o traidor, o bárbaro, o pérfido, o inimigo da Cristandade, uma categoria humana que é radicalmente desvalorizada, e, que urge combater.
Aliás, uma certa tradição cristã generaliza que os homens do frio teriam corpos brancos e cabelos ruivos, de rosto pálido e fraco entendimento, em que a ausência de governo, leis ou qualquer tipo de organização, associada à falta de saber e ciência determinava que estes povos - os “vikings” eram os “gentios”, que urge afugentar.
Braga e Compostela
A rivalidade entre estas duas dioceses, Braga e Santiago de Compostela, prolongar-se-á por tempo incerto, até que novos horizontes despontem no seu futuro.
Rapidamente, Santiago de Compostela torna-se no centro espiritual da Galiza, procurando, através do seu poder eclesiástico, uma independência política em relação ao governo régio do reino de Leão.
“Braca Augusta”, centro nevrálgico das antigas vias romanas, antiga capital do reino suevo, desempenhou um papel relevante na cristandade da Idade Média, cuja influência religiosa se desenvolvia pelos territórios da Galiza do Norte. Segundo o célebre “Itinerário Antonino” são citadas cinco vias romanas:, (via XVI, XVII, XVIII, XIX e XX), além da existência de uma outra. A via XIX, ligava Braga a Lugo; e, a via XX, em direcção a Barcelos, cujo traçado se torna discutível é a famosa via XX “per loca maritima”, literalmente traduzido “através de locais marítimos”, que tanto demarcava o rio Minho, como as costas e rias galegas, com um sentido mais comercial.
Os condados de Límia (província de Orense) e Toronho (territórios de Vigo até La Guarda) floresceram sob o impacto evangelizador da acção dos bispos de Braga, e estiveram, várias vezes, dependentes da sua jurisdição eclesiástica.
É graças à acção evangelizadora de S. Martinho de Dume que o povo suevo se converte definitivamente ao catolicismo. No ano de 572, o Concilio II de Braga, aprova oficialmente a diocese de Tui, cuja jurisdição abarca os territórios compreendidos, desde as costas atlânticas até às suas montanhas interiores, e desde a ria de Vigo até ao rio Lima, cuja demarcação remota ao “Paroquial Suevo” (ca.572). Actualmente, esta zona geográfica está dependente da província de Pontevedra, e, cuja parcela mais setentrional, noutros tempos correspondia ao Condado de Toronho, tão do agrado de D. Afonso Henriques, que ao perdê-lo, por duas vezes, deixou um pequena frota de quatro a seis barcos, em Santa Maria de Ola. Em 915, a diocese de Tui foi restaurada por Ordonho II, recebeu vários foros do “Príncipe Português”, mas foi associada à hegemónica diocese de Conpostela, em 1024.
A convivência social, e, os vínculos religiosos e parentais superavam as demarcações políticas e territoriais. Estas regiões constituíam, poderíamos dizer, um autêntico xadrez de recuos e avanços de influência eclesiástica, a cuja estratégia se associaram, posteriormente, interesses políticos, ingloriosos para as pretensões de Portugal. Somente, em 1514, os territórios entre o rio Minho e o rio Lima, retornam à jurisdição eclesiástica de Braga, graças à colegiada de Valença, cuja origem remonta ao ano de 1381.
Tanto o condado de Toronho, dependente da diocese de Tui, como o condado de Límia, cuja extensão se estendia do rio Lima até Orense formaram parte das ambições políticas dos senhores portucalenses, cujos limites dependeram da acção evangelizadora dos eminentes bispos de Braga: S. Martinho de Dume e Frutuoso.
Nos anos finais do século X, aquando da chegada da expedição de Viking Gunderedo, os territórios do norte do rio Lima e Minho, dependiam, portanto, da jurisdição eclesiástica de Tui, e, por consequência da hegemonia crescente de Compostela.
As ambições eclesiásticas de Compostela chegaram ao ponto de exigir uma paridade com a igreja de Roma, já que era a digna detentora de um apóstolo. Por isso, as suas disputas eclesiásticas junto do Papado implicavam um reconhecimento da sua hegemonia, que não tinha qualquer rival.
No século X, a antiga metrópole eclesiástica de Toledo estava debaixo do jugo muçulmano, de forma que a ambição e exigência dos seus direitos eclesiásticos de Compostela se estendiam à cidade de Mérida, antiga diocese dos lusitanos.
«A administração territorial visigótica foi decalcada da que existia desde o início do século IV; tanto o poder civil como o eclesiástico conservaram a divisão em seis províncias com as suas capitais, governadas conjuntamente por rector provinciae, por vezes chamado iudex, e um bispo metropolitano. A Bética com Sevilha e Córdova, a Cartaginense sob a autoridade de Toledo, a Lusitânia com Mérida, a Galiza com Braga, a Tarraconense administrada por Tarragona, e a Septimânia a partir de Narbona foram , por sua vez, divididas em circunscrições mais reduzidas e cuja importância foi aumentando, os territoria». (2)
A antiga capital espiritual da Galiza, Braga, estava reduzida a um papel totalmente secundário, encontrava-se subordinada aos imperativos de Compostela, a cujas disputas eclesiásticas, a estadia e permanência de Viking Gunderedo não devia estar alheia. De facto, os prelados de Braga nunca lutaram com armas contra Santiago, contrariamente aos bispos e militares desta diocese, como pretendem afirmar certos autores, mas, certamente desenvolveu os mais subterrâneos acordos diplomáticos pela sua emancipação.
Além dos concílios de Braga, cujo número foi superado por Toledo, dois grandes personagens surgem neste antigo apogeu barcarense: Martinho de Braga, e, São Frutuoso.
Desde século VI, a influência de Martinho de Braga (originário da Panónia, nascido entre os anos de 518-525 a 579), estendeu-se aos territórios a Norte da Galiza.
Frutuoso de Braga, escreveu a “Regula Monachorum” e a “Regula Communis”, difundiu os ideais monásticos, através da construção de, pelo menos, doze mosteiros, na Galiza. Nestes ideais, destaca-se a dimensão ascética do trabalho, o espírito comunitário que prevalecia sobre o impulso individual, e, a pecuária que se constitui como uma actividade económica de relevância, típica do Noroeste Peninsular.
Martinho de Braga, através do mosteiro de Dume, introduziu, no Noroeste Peninsular, um monaquismo inspirado no ascetismo e eremitismo orientais, cuja influência cultural se prolongava através das antigas vias romanas, definindo circunscrições religiosas, e, cuja organização eclesiástica atinge a sua coroação no célebre “Parochiale Suevorum”.
Os bispados e regiões hispânicas mantinham a estrutura dos antigos administradores romanos, ainda que os vestígios dessa romanização sejam mais visíveis na Galiza Meridional. Através do “Parochiale Suevorum” estabelecem-se as circunscrições religiosas, conjuntamente com uma rede de “habitas”, ou , pequenos aglomerados populacionais, que recobriam o percurso das antigas vias, cuja notável organização se deve à influência de São Martinho de Dume e futuro bispo de Braga. Por volta do ano 585, o rei Leovigildo põe fim a século e meio de existência do Reino dos Suevos, de quem Martinho de Braga tinha sido evangelizador.
No século VII, o bispo de Braga (656-665), São Frutuoso, detentor de uma excepcional biblioteca particular, fundou numerosas comunidades religiosas, que difundiu através de toda a Galiza, às quais deu uma ordem religiosa, que o seu sucessor Valério de Bierzo ainda mais reforçou. São Frutuoso difundiu através destas comunidades um saber religioso, económico e agrário, que muito contribui para a cultura e cristianização destes povos, criando mosteiros rurais, cujos vestígios se diluíram com o tempo.
O declínio do poder e influência religiosa da arquidiocese de Braga, reacendeu com a notável emergência no centro religioso e político de Santiago de Compostela, cujo resplendor perdurará por alguns séculos, e, cujas ânsias políticas de independência em relação ao poder de Leão-Castela terminará por acção dos Reis Católicos, em 1486: a Galiza perdeu o estatuto e título de Reino.
Retemperando as suas forças políticas no santuário de Compostela, a Galiza, como reino, esteve sempre dependente do poder régio da região de Leão, e a sua autonomia balançava na força exercida pelo Reino de Leão. No ano de 966, com a morte do rei Sancho II, os senhores da Galiza do Norte encontraram razões suficientes, para mais uma vez, afirmarem a sua autonomia. Invocando razões de falta de linhagem de nobreza, constituem-se numa assembleia de bispos e nobres, cuja época se situa entre 967-980, por coincidência, período em que Viking Gunderedo relança os seus ataques aos territórios do Norte da Galiza.
O eixo político entre a região de Coimbra e a zona de Leão sofre uma crise de instável governação e autoridade, enquanto que o eixo estratégico de Santiago de Compostela e as forças vikings, estacionadas na Galiza Meridional, se envolvem em ferozes combates pelo domínio e poder dos seus territórios.
(1) Irving, T.B. "Celtas, Magos o Normandos en la Primera Crónica General", pp. 470 - Universidade de Tennessee, Knoxville. Conforme publicação do Instituto Cervantes.
(2) Rucquoi, Adeline, “História Medieval da Península Ibérica”, pp. 53, Editorial Estampa, Lisboa
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
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