No livro n.
º160 da “Receita Geral da Alfândega de Vila Nova de Cerveira de (1854/1855),
não constam “os prejuízos e as agressões” que os filhos do abastado lavrador Francisco Lourenço Guerreiro (José e João), João Barreira e filho, José do Rego e José Pedreira de Gondarém, coadjuvados por António Nova, da freguesia de Sopo, desferiram sobre os Guardas do “Contrato
do Tabaco”. As “ameaças e agressões” não ficaram impunes, já que os
contrabandistas foram parar com os costados no “mocho” da Justiça, no
Tribunal Municipal de Caminha, corria o ano de 1855. Desconhece-se o teor da
condenação. Mas os cincos jovens, acompanhados de duas figuras paternais, que agrediram
os “Fardados”, não escaparam à respetiva punição, segundo reza o “Auto
de Querela” dos “Guardas do Contrato do Tabaco e da Alfandega de Vila
Nova de Cerveira”. Cf. (Arq. Distrital de Viana do Castelo,
01.01.1855).
Se a fama acompanha
Gondarém, como “terra de contrabandistas”, por causa do poema de Pedro
Homem de Melo, a “cartografia de rebeldes” remete-nos para este conflito
entre jovens e “Fardados” do século anterior. Onde há raia, existe contrabando, e Gondarém
não é exceção à regra. Portanto, se esta enraizada tradição remonta a séculos
anteriores, nela se inscreve esta “geografia de rebeldes”. Além disso, na
descrição poética, parece que o autor do poema quer “vir morrer” a
Gondarém, fazendo uma apologia do “espírito de contrabandista”. E, se a garganta não o acompanha no seu estro,
quis o destino que o fado se soltasse pela voz indelével de Amália Rodrigues: “Vim
morrer a Gondarém, terra de contrabandistas”.
A esta “cartografia
de rebeldes”, poeticamente definida, vinculam-se dois “Postos de Guarda
Fiscal” que assinalam uma atividade clandestina e constante, digna e
merecedora de patrulha. Assim, na linha
da fronteira, sobre as águas do rio Minho, estava de atalaia o “Posto de 1.ª
linha”, no lugar da Mota; e, na sua retaguarda, permanecia o “Posto de
2.ª linha”, na E. N. º 13, no lugar das Faias, cujas funções eram de
“stop” de viaturas, de verificação de carga, e captura de
contrabandistas. Assim, à “geografia
de rebeldes” associa-se o “espírito de grupo”, porque “ser contrabandista”
não é um ato isolado, mas consiste numa atividade de vários intervenientes.
Todavia, estas construções pertencem aos anos iniciais do século XX, e traduzem
a efervescente atividade do contrabando nestas terras.
No século
XVII, o Reino de Portugal era o principal produtor de tabaco; e, desde o ano de
1630 detinha o monopólio desta mercadoria. As embarcações vindas do estado da Baía,
no Brasil, chegavam com os seus livros de registo, enviados para a Junta da
Administração do Tabaco. O controlo desta mercadoria era feito pelas alfândegas
e seus guardas. Ao monopólio juntava-se o imposto, cujo elevado lucro, rondava
os 20% das receitas para o Reino. As várias alfandegas, por onde circulava o
tabaco, tornaram-se no epicentro desta luta entre comerciantes e funcionários
das alfandegas, guardas e contrabandistas.
O “Auto de Querela” insere-se neste conflito entre os “guardas
do Contrato do Tabaco” e o grupo de jovens, provavelmente “contrabandistas”,
em que as desavenças eram constantes. Aliás, a conivência e convivência entre
contrabandistas e alfandegários, ou, funcionários portuários e contratadores era
quase um pratica normal; (mas a perda e independência do Brasil, em 1822,
arrasou quase metade do comércio do Reino).
Em 1 de
Janeiro de 1769, institui-se o “Livro Oficial” da Alfândega de Vila Nova
de Cerveira, para o registo de “ordens, provimentos e provisões”, que
durante 103 anos, religiosamente, regista as receitas deste “Porto Seco”.
Em 1837, entra em vigor o “Código das Alfandegas”, com as suas taxas e tarifas
alfandegárias, em cuja pauta aduaneira se destaca o tabaco. Em pleno século
XVIII, o trafico de mercadorias de “todo o género” era bastante intenso nas
alfandegas do rio Minho, de forma que os “conflitos de interesse” se sucediam,
sobretudo, com o comércio do tabaco. Este negócio envolvia o “estanco”
(loja/armazém da alfandega), que detinha o tabaco, e, os negociantes, com o seu
séquito de oficiais e criados. O contratador de tabaco tinha os seus homens; mas,
a seu lado, estavam os “contrabandistas". Em 1862, aparece um "Auto de Querela contra Incertos", movido pelo Ministério Público, por causa de "arrombamento e condução de barco de pesca, até à Alfândega da Vila”, cuja embarcação pertencia a Bartolomeu José Lagos, de Gondarém. Cf. (Arq. Distrital de Viana do Castelo, 01.01.1862)).
Em 1844, surge a “Companhia Nacional de Tabacos”, cuja indústria tabaqueira ilustra os técnicos portugueses, e torna-se na principal indústria nacional. No entanto, no início do século XIX, através do “Rochedo de Gibraltar” começa a surgir o “contrabando de tabaco”, sob o comando de alguns ingleses, após o infeliz Tratado de Methuen, (1703/1836), que tanto condicionou a indústria portuguesa. O tabaco era uma mercadoria muito rentável e desejada, que envolvia grande traficância ou tráfico; e, por isso, originava a fuga de receitas. Como mercadoria de “lucro fácil”, a produção e comercialização do tabaco incorre facilmente em disputas, delitos, crimes e contendas. Por causa do seu monopólio, (quer em Portugal, Espanha e França), a divulgação do tabaco na Europa, como produto de consumo generalizado, tornava-se numa extraordinária fonte de receitas, sujeita à sua legislação. Em 1885, aparece um "auto de querela" contra José Maria Miranda, casado, morador, na freguesia de Gondarém, Vila Nova de Cerveira, por causa de "contrabando de tabaco" (processo incorporado no Tribunal Judicial de Caminha, em 02.04.2009). Cf. (Arq. Distrital de Viana do Castelo 01.01.1885).
A “tipologia do contrabando” encerra várias versões e variadas justificações: desde a sua atividade, como forma de sobrevivência até, à exibição e ostentação de dinheiro e de luxo. Algumas vezes, o contrabando, apesar de ser um “comércio ilegal” era tolerado e consentido pelas autoridades, como forma de “ganha pão” das pessoas pobres, já que o sustento das famílias estava em causa. Esta conivência abrangia, tanto os necessitados, como os “Fardados”, quando se tratava de “bens essenciais”. Quando o “comércio ilegal” englobava outro tipo de mercadoria e visava o enriquecimento e o lucro, a sua condenação tornava-se mais premente. Neste tipo de contrabando instalava-se o suborno e a corrupção. A transação de metais e seus derivados, máquinas, tabaco, perfumes ou bens de luxo, ajustavam-se aos “códigos de honra”, aos “ajustes de conta” e a um vocábulo particular. A “linguagem dos contrabandistas” entrava nas artimanhas das palavras.
Os poderosos carros “Ford” e
“Mercury”, reforçados na sua traseira com molas suplementares,
estabilizavam, horizontalmente, em frente das operações “stop”, sem deixar
qualquer suspeita de mercadoria, escondida nas bagageiras: ou seja, o contrabando. Nos anos sessenta do Século XX, em Gondarém, emergem três destacadas figuras nas "artes" do contrabando. Os "mestres contrabandistas" exibiam sinais de fortuna, enquanto que os "aprendizes de contrabandistas" limitavam-se ao transporte da carga de mercadoria, pela qual eram bem pagos. Por vezes, a fome atacava os "fardos de bacalhau", de forma que a água do rio aliviava em algumas gramas o peso da carga. A tarefa principal era não deixar cair a carga, perante os gritos ou assobios dos "Fardados". Era, pouco frequente, ouvir algum tiro sobre
os pneus de alguma viatura, porque na vistoria da papelada escapava sempre
alguma gorjeta, cujo rumor se evidenciava em “luxuosas motos”, que
alguns “Fardados” gostavam de exibir. A relativa calmaria do “Posto de 2.ª
linha”, que a “E-N.º 13” assinalava, estava longe da intolerância e
violência que despontava da margem direita do rio. Por vezes, arriscava-se a vida; e, as “balas
mortais” sibilaram sobre o corpo de um jovem, de cuja triste memória, uma
trémula vela acesa iluminava a outra margem, em meados do Século XX.
Em 21 de
setembro de 1992 extinguia-se a “Guarda Fiscal” que antecedera o “Corpo
de Guarda Barreiras” do Reino de Portugal. Com o fim desta “força
especializada” na “fiscalização aduaneira e fronteiriça”
desapareceu, também, um dos mais destemidos contrabandistas de Gondarém, que
tinha florescido de alguns desaparecidos, ou, desafortunados. Já, dentro da tipologia do “contrabando
da “pesada”, em que os “camiões de tabaco” desafiavam as estradas
portuguesas, somente um “especialista”, na arte e engenho do contrabando,
defendia que a entrada de divisas no País, justificava “per se” esta
atividade, tal era a sua ideologia. Qualquer filosofia hegeliana desafinava com
este tipo de linguagem, cuja domínio e apropriação linguística carecia de dois
anos na sua aprendizagem. As ramificações deste tipo de contrabando
estendiam-se às costas galegas, já que na «década de 80 do século passado,
1/3 do tabaco ilegal que entrava na Europa era movimentado pela Galiza» (1)
Obs:
(1) CARRETERO, Nacho , obra intitulada "Farinha" (edições desassossego).
(2) Gunderedo: "A Alfandega de Vila Nova de Cerveira", editado em 13.09.2020
(3) Pedro Homem de Melo (música de Alain Oulman, por Amália Rodrigues, 1969 (?) .
Vim morrer a Gondarém
Pátria de contrabandistas
A farda dos bandoleiros
Não consinto que ma vistas
Numa banda, a Espanha morta / Noutra, Portugal sombrio
Entre ambos, galopa um rio / Que não pára à minha porta
E grito, grito: acudi-me / Ganhei dor, busquei prazer
E sinto que vou morrer / Na própria pátria do crime
Por mor de aprender o vira / Fui traído, mas por fim
Sei hoje, que era a mentira / Que então chamava por mim
Nada haverá que me acoite / Meu amor, meu inimigo
E aceito das mãos da noite / A memória por castigo
A farda dos bandoleiros
Não consinto que ma vistas
Numa banda, a Espanha morta / Noutra, Portugal sombrio
Entre ambos, galopa um rio / Que não pára à minha porta
E grito, grito: acudi-me / Ganhei dor, busquei prazer
E sinto que vou morrer / Na própria pátria do crime
Por mor de aprender o vira / Fui traído, mas por fim
Sei hoje, que era a mentira / Que então chamava por mim
Nada haverá que me acoite / Meu amor, meu inimigo
E aceito das mãos da noite / A memória por castigo