O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão
Esse comboio de corda
Que se chama o coração. (1 - 4 - 1931)
Efetivamente, o poeta sofre e sofre demais, que o diga o "agrilhoado" Fernando Pessoa, que parece um Prometeu, roubando aos deuses algum segredo.
«Não basta a etimologia da palavra máscara, para me iludir como
pessoa. Como, a sua própria sonoridade não fosse objeto de comunicação. E, no
teatro da vida não sofresse esta metamorfose que me angustia». O poeta sofre de
tal forma que procura iludir que não há sofrimento.
Não é, por acaso, que F. Pessoa chama o poema de
“Autopsicografia”. Psicólogo da sua própria pessoa, ou, máscara, que se afirma como fingidor. Embora, alguém diga: «por isso é legítimo, e simultaneamente errado, afirmar que esta poesia é autobiográfica. Seria mais seguro dizer que reflete e recompõe muita materia autobiográfica» (1)
Exala das suas entranhas uma angústia existencial, que somente
o fingimento revela como dor incarnada. Todavia, o poeta é também um ator, que utlizando uma máscara, esconde o seu interior.
Esta minha dor, totalmente minha, pessoal, e, intransmissível aproxima-se daquela dor filosófica: “ this is my pain” de Ludwig Wittgenstein nas suas “Investigações Filosóficas”. O poeta diz: «não as duas que ele teve”, aquela que é comunicada e a outra que é intransmissível; ou seja, aquela que é visível, e a outra que permanece “invisível”.
Objetivamente, o poeta tenta “comunicar esta dor, mas
queda-se como fingidor, já que não consegue "relançar no vazio" uma experiência de dor, que os outros nunca tiveram ou não têm.
«Em conclusão "Autopsicografia" encerra, em verdade o pensamento justificativo daquilo a que temos de chamar o «caminho alquímico», através do qual Fernando Pessoa comunica como Absoluto» (pg. 53). Apesar do conteúdo notável da hermenêutica literária de João Gaspar Simões, não relançamos o Absoluto como "porta de saída" do seu poema.
Recentrámos, o poeta, neste jogo do tempo e do mundo, em que
o “motor do coração”, como máquina das sensações e dos sentimentos, se afirma através do seu movimento, e, deste modo se desvincula da razão.
Em vez de transcendência, gira-se um imanentismo, tipicamente
pessoal e "pessoano " Eu sou um poeta, diria Pessoa, “eu sou um fingidor”, que
carrega em si a dor.
É pelo movimento da sua poesia, pelas épocas vindouras que o
tempo arrasta que o apreço da sua obra se deve concluir. No centro da dor e do
fingimento permanece o coração no seu movimento.
«Os que lêem o escrito/escritor», não sou eu “o que escreve»?
(1) Poesia Ortonónima - Fernando Pessoa, obra essencial por Richard Zenith, ( in prefácio , o drama de ser "eu") pg. 5, Aletheia Editore, Pub. Expresso, Lisboa 2015
N.B. (pg. 51 e 53) - SIMÕES, João Gaspar "Fernando PESSOA" - ensaio interpretativo da sua Vida e Obra - Ed. Texto Editores e Edições Expresso, Lisboa 2011.