«A embarcação balança acossada pela
ondulação, que bate de estibordo. -As
águas estão lamacentas - comento. O capitão parece ofendido com o meu
comentário. E declara, sobranceiro: - Estão assim por causa do ouro. –
Faço de conta que não há surpresa dentro de mim e o marinheiro volta a
atacar: – Lá mais acima, junto à
nascente, estas águas estão carregadinhas de ouro. – Solta as duas mãos do leme e confessa: - Um
dia destes, largo o mar e vou garimpar para lá, onde a água nasce da cor do
sol.» Mia COUTO, “O Mapeador de Ausências” pg.198,
Editorial Caminho, Lisboa, 2020.
À procura
de "Minius" (Minos), ou, do Minho.
Nos seus caudais invernais, as águas barrentas
do rio denunciavam aos romanos a subtil mineração, que não demoraram a
explorar. Acampada nas suas margens, a
legião romana não encontrara a identificação deste caudaloso rio, que se
espraiava naquele vale e planície, face a um pequeno castrejo, na outra margem. Dos fenícios nada restava de memorial, ou de qualquer antigo entreposto; mas, segundo testemunho de um prisioneiro, foi o antigo herói grego Tude, que
deu origem àquele pequeno castrejo, na margem direita do rio, com o seu cais comercial; (mais tarde, conhecido como Tuy). Aqui, o rio encontrara a “paz e
calma” na planície, em frente do “Castellum Tude”, após muitas
quedas e sobressaltos das suas correntes de água nas apertadas encostas de
granito, que comprimiam o seu livre curso de água. As gotas de água brilhavam nas pedras de granito, sustendo no ar a água cristalina que, no seu remanso,
os tons de prata espelhavam a sombra do seu arvoredo. Uma fonte de água na encosta da margem
direita saciava a sede de alguns soldados romanos, agora esquecidos do rio “Lethes”; enquanto outros preparavam as suas refeições. Do alto da colina observava-se o
pequeno “Castellum Tude” que, brevemente, seria alvo de um ataque, por
parte das poderosas forças romanas.
Corria o ano
de 137 A.C., quando esta pequena legião romana assentava arraiais junto à fonte
de água desta colina, da qual se avistava o “Castellum Tude”. O centurião Decimus
Julius Brutus tinha acordado e não sabia onde estava. (1) O acampamento das
suas tropas estava calmo e sereno, após breve escaramuça, antes da chegada à
margem deste rio. Mas a serenidade das suas tropas contrastava com o turbilhão de ideias, na qual navegava a sua mente.
O andamento da sua campanha militar, e, da pequena “legião romana” continuava firme sobre o seu comando;
apesar do incidente de revolta nas margens do rio “Lethes”. O cargo de pretor, ou,
general da pequena “legião romana” estava associado ao seu atributo de tribuno
militar, pelo qual o dever do uso e propriedade do “logos” lhe competia, sendo-lhe implícita a retórica, e a tarefa da
comunicação da palavra escrita; e, consequentemente, a atribuição de nomes e registo de locais com a adequada toponímia. Antes
da atribuição de qualquer nomenclatura sondava os locais ou personagens, dignos
de alguma consideração; como ficara demonstrado pelo registo do grego Tude,
ou, Tyde, que deu origem a Tui. Nesta tarefa, por vezes, fazia correr dois ou três
homens a cavalo pelas montanhas ou vales, na procura de nomes, terras e suas
gentes. As suas deliberações e apropriações de locais tinham de ser fundamentadas para evitar dúvidas ou confusões,
e, finalmente confirmadas por escrito. Assim, o escriba encarregava-se de passar para a posteridade
a atribuição dos nomes de rios, montanhas ou locais, dignos de um histórico registo.
Se, o rio
“Lethes” corria em linha perpendicular para o mar, verificava-se que as águas deste rio seguiam numa linha diagonal, mais oblíqua. Além disso, a terra avistada confundia-se com uma ilha, já que
os cursos das águas do rio cursavam em linha paralela ao mar. Ao ouvir falar de
um grego instalado na sua margem esquerda, reavivou-se na memória do centurião a saudosa
ilha de Creta. Mas, no turbilhão de ideias que inundavam o seu espírito,
resguardou-se das antigas lendas gregas, para se fixar num personagem - o rei Minos, da
cidade de Cnossos. Na confusão das palavras que surgiam ao seu espírito,
pediu ao escriba que o libertasse daquilo labirinto. em que estava encerrado. para encontrar um nome, uma âncora que pudesse aprisionar as águas daquele rio. Já que não constava nenhum nome sobre aquele rio; e, se Roma lhe pedisse alguma
informação do local, onde tinha pernoitado com as suas tropas, nem o rio
Lethes, com o seu batismo de rio do “esquecimento” o salvaria do escárnio,
típico dos senadores romanos, se não encontrasse um digno “topo”.
A lembrança do rio Lethes, esse rio que da “morte” ou “esquecimento” o livrara, graças à sua coragem e ousadia de centurião, não lhe dava qualquer inspiração, para acalentar alguma inovação ao léxico latino. Ainda que não precisasse das artes da retórica daqueles brilhantes tribunos romanos para convencer os seus soldados a marchar, até à margem deste caudaloso rio. Mas, as águas deste rio careciam de uma identidade, que não fizesse obscurecer a sua campanha militar.
De novo, encontrou outro curso de águas, cuja força e dinamismo, enchia de orgulho a sua cavalgada. Pressentia que este novo e belo rio não invejava o “espelho” do rio Lethes, cujo encanto e calmaria tinha adormecido e encantado as suas tropas, mas suspirava por um batismo, para que deixasse de ser um rio selvagem, e, sem nome. Sem dúvida, que o Império Romano sentir-se-ia orgulhoso de acrescentar novas terras e novos nomes, ao ilustre panegírico que o léxico latino encerra. A saudação ao centurião romano, por terras do “além Roma”, seria acompanhada com o atributo de novos topónimos que a sua campanha militar enobrecia perante a ilustre “Cidade Eterna”.
Estas águas precisam de um nome?
Sem dúvida, que a “Cidade Eterna”
sentir-se-ia orgulhosa de introduzir na sua língua latina mais um topónimo, que
engrandecesse os seus territórios e a extensão do Império Romano. As guerras e as batalhas
tinham o condão de erguer os seus heróis, mas as terras conquistadas deviam ser assinaladas no seu devido território
com a sua genuína identidade, ou seja, a sua marca, e, o seu próprio nome. Todavia, a complexidade da natureza, dos
seixos e areias, peixes e algas, arbustos e árvores, pássaros e animais
misturavam-se com as pequenas ilhas e a diversidade de línguas encontradas, cuja profusa amálgama,
sem qualquer sinalização gráfica, remetiam continuamente para as cenas do Labirinto
de Creta. Mas este labirinto era a prisão, onde o rei Minos, pediu ao mestre e arquiteto Dédalo,
para encurralar o lendário Minotauro. De forma que carecia de igual força e poder para encarcerar estas rebeldes águas numa devida apropriação de identificação. Nomear seria chamar à razão, apropriar-se, tomar posse; no entanto, a perplexidade do nome
e seu enigma permanecia constante na sua mente.
Estas águas não podem entrar no mar sem ter um
nome?
Cada vez mais encurralado estava o cônsul romano,
que não encontrava forma de batizar o rio, nem o seu escriba ousava desvendar
um nome para gravar na cera da sua tabuleta.
Não cabia ao escriba qualquer estilo, nem fazia parte do seu estilete,
desafiar com inovações, quem por direito, devia nomear e imprimir no léxico
romano, as devidas determinações e adequada topografias, que aos lugares lhes
pertencem. Perante tantas hesitações, quer do cônsul romano, quer do seu escriba, não
havia forma em selar um nome àquele rio, e àquelas águas; cujo caudal se
afastava de Finisterra, e daquele mar sem fim. Por vezes, até, as brumas das
águas escondiam os seus possíveis avanços e soluções, para tal tarefa.
Tornava-se imperativo, e, urgente; portanto, urgia ancorar aquelas águas, dando-lhes uma
legítima identidade. A confusão que reinava no espírito do cônsul romano era do
tamanho daquele labirinto da antiga Grécia, onde estava aprisionado o Minotauro.
Na impossibilidade de prender aquele personagem mitológico de “corpo humano” e
“cabeça de touro”, cujo nome é Minotauro, (já que ele fazia parte da
história de Creta), o cônsul romano deteve-se naquele que detinha o
poder de nomear e aprisionar, identificar e circunscrever, ou seja, o rei Minos.
Esta palavra não saía da sua cabeça, e repetia-se constantemente no seu
espírito: Minos, Minos, e só, Minos…
Apesar da constante sonoridade da palavra “Minos”, o cônsul romano ficou sobressaltado por idêntico nome, utilizado numa obra de Platão, que serve de introdução ao seu livro sobre as “Leis”. Todavia, como chefe militar e conhecedor da retórica, não pretendia entrar pelo caminho da discussão filosófica: «Em Creta, devido a uma das leis estabelecidas por Minos, as pessoas não bebem juntas até à embriaguez. E, de facto, é claro que o que ele aceitou como excelente foi estabelecido como uma prática aceite [320b] também para os seus cidadãos. Para Minos, aquele que não aceita uma coisa, mas faz algo diferente do que aceitou, é uma pessoa desonesta» (Platão, Minos). Finalmente, a sua convicção como militar encaminhava-se para as noções de poder e autoridade, que radicavam, única e exclusivamente, nesse personagem de Creta, cujo nome era Minos. Minos era o símbolo da força e do dinamismo que dobraria as rebeldes correntes de água deste rio. Portanto, tinha chegado à conclusão final de que devia quedar-se em “Minius” com a sua etimologia, ou seja, Minho, cuja cartografia abrangeria os “minhotos”. (Minho's river)
Cf:«As Leis começam onde o Minos acaba: O Minos acaba com o louvor das leis de Minos, o rei de Creta, filho e pupilo de Zeus, e as leis começam com o exame dessas mesmas leis» Cf. STRAUSS, Leo, The City and man, Chicago, University of Chicago Press, 1978, p. 62.
“Platão e Minos” por JOSÉ COLEN* in “O Minos no Corpo Platónico". Filosofia - Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 31 (2014) 7-25
(1)
Decimus Julius
Brutus, eleito cônsul em 138 A.C. considerado o “Galaico”, pelas suas vitórias
contra os Brácaros e os Galaicos, nos anos de 137 (A.C.). Bom orador e versado
em literatura grega e latina; em 136 (A.C.), celebra as suas conquistas, em
Roma. Seu neto “Brutus”, no ataque a Júlio César ficou famoso, pela frase: “Tu
quoque filli mi”(Também tu, meu filho!...).
(2)) Segundo a lenda, o monstro "Minotauro", filho da esposa do rei Minos e de um lindo e encantador touro, é simplesmente "parte homem" e "parte touro", segundo o escritor Ovídio
(3) Rio Lethes, ou rio do Condado de Límia, mais tarde, “Rio Lima, que desagua perpendicularmente no Oceano Atlântico, na cidade de Viana do Castelo, antiga Vínea.