E, do mais profundo mundo soava: ....
«Senatori Romani...Senatori Romani..."
E vós, Tágides
minhas, pois criado
Tendes em mi
um novo engenho ardente
Se sempre, em
verso humilde, celebrado
Foi de mi
vosso rio alegremente .......(Camões, Canto 1, Estrofe 4)
Remoía-se o poeta em convulsões líricas, cujas musas indecifráveis sopravam
no seu espírito atribulado. Não era a pretensão do estro de Camões, que na sua gloriosa epopeia,
evocava as suas Tágides, nem eram as mais recentes candidatas a este estatuto - as
musas Miníades - que pretendiam instalar-se em renovada força inspiradora deste rio, cujo batismo romano era de "Mínius". Estas mais recentes musas eram escravas de Baco, a quem os Lusitanos também deviam alguma filiação; e,
desta tribo também se afastava o jovem Demóstenes, já que pertencia aos “galaicos”.
Mas, a cartografia de uma localidade nem sempre coincide necessariamente com a
geografia visível, em que as águas do rio Minho tinham devorado três inocentes
crianças, por causa do feitiço e do encanto da sua bela “ilha dos Amores”. Por isso, o trio das
musas Miníades não podiam implorar a clemência do seu deus com o rapto destas
três inocentes criaturas, que as águas lhes ofereceram sem qualquer tributo, e,
em forma de angélica oferenda. Neste momento, o trio das inocentes criaturas ascendia, pela voz do poeta, agora,
transformado em tribuno, a uma operação maior que a sua cartografia representava,
elevando-se à categoria de uma menção discursiva, somente, auditada pela Cúria Romana.
Esta operação de desmontagem através do tempo e da história, pretendia ultrapassar
a relação de espaço geográfico e visível, (ainda que, não longe da sua
localidade, se avistasse uma ponte de origem romana), para se incrustar nas
fendas imaginárias da sua projeção que a retórica convocatória pressupõe como desígnio
reivindicativo de um passado ainda presente. Para além de convocar a assembleia
dos distintos tribunos romanos, pretendia-se chamar e reclamar a atenção de um mapa, em que o seu lugar habitual gire em torno de notável mundividência. No alto das suas verdes margens ecoava a mais pura língua latina na sua origem.
«Senatori Romani... // Se..na..to..ri... Ro..ma..ni...»
Esta paisagem que vemos e
admiramos, bucolicamente bela na sua exuberante natureza, encobre imprevisíveis
eclipses históricos, que a romanização deixou como peugada da sua influência
militar e jurídica. Não nos bastou receber a fonte do direito e a técnica da
sua engenharia como herança, mas também, o cunho e registo deste rio romano,
cujo nome senão é no seu sentido de menoridade, ou, “mínimo”, foi nomeado “mínius”, ou
seja, Minho. Caudaloso nos seus invernos, e, temível na força das suas águas somente
se deixavam atravessar em suas águas mínimas. Dos mais célebres romanos, que
atravessaram as suas águas, ergue-se Decimus Junius Brutus, (180-113 -A.C) cujo
nome ficou associado às suas façanhas, como o “Gallaecus”, após duras batalhas
com os galaicos. Ainda, hoje, as vias romanas são testemunho das suas
campanhas. Mais tarde, Caius Julius Caesar (100-44 a.C.) diria destes “galaicos”
que «há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa
governar». Este orgulho da sua independência teve a sua mestria em Viriato que,
por três vezes, derrotou os romanos. Mas ao Império Romano nada escapava e o
Noroeste Peninsular tornou-se na mais extrema província romana – a Gallaecia.
A “Gallaecia” era a última
extremidade do Império Romano, a província do Noroeste Peninsular, onde foi
assinalado um promontório como “finis terra”, indicando que o fim do mundo
acabava neste plano planisfério. Associado ao cabo de “fim de terra” surgia a
fantasmagoria do “fim do mundo” com os seus monstros, as suas bestas negras e os
seus mostrengos, (que, mais tarde, também emergiam nos relatos dos escritores
árabes, acerca dos perigos deste mar). Ora, no ano de 136 (A.C.), chegando às
águas tranquilas e sonolentas do rio do “esquecimento”, ou seja, o rio Lethes
(da morte), as tropas romanas, temerosas e assustadas com os fantasmas destes
monstros, estancaram aterrorizadas e perplexas, plenas de receios e medos. E, temendo
esquecer a sua identidade e pátria com a ousadia de atravessar o rio Lethes, desafiaram
o seu chefe a ser o pioneiro desta façanha, que foi obrigado a chamá-los pelos
seus nomes, tendo erguido o seu estandarte romano, na outra margem, como símbolo da
sua audácia. Mas, os medos e temores surgiram, de igual modo, na
aproximação às águas do rio Minho. Somente, após o sono refeito, e, após o acampamento no lugar da
Gandra (Valença do Minho), refizeram o seu caminho militar por terras acima, até à futura cidade de Lugo.
A sua ousadia oratória não recaía naquela paixão de quem o tratava por
“patrício”. Nem se atribuía a uma simples afinidade local, mas, por retomada
cultura latina, reivindicava alguma suposta descendência das famílias romanas,
cujos fundadores de Roma, tinham o direito de participar na Cúria. Apesar de
“homem livre”, e, longe da escravidão, ascendia às ilustres clãs romanas, onde
o seu Senado Romano se compunha de um
venerado “conselho de anciões”, cuja argúcia e talento, somente podia ser
despertada pela voz deste tribuno.
Relembrava-se que os autênticos “galaicos” residiram na região da foz do
rio Minho, e, que os seus castros, apesar de estarem no cume das montanhas, se
distinguiam dos montanheiros “galaicos lucenses” e dos vaqueiros “galaicos
brácaros”, cujos povoados se dispersavam em amontoados de tipo “castella”. Nas
terras dos autênticos galaicos escondiam-se os verdadeiros monstros que se
transformavam em autênticos fantasmas, ou, figuras míticas, aterrorizando as
tropas romanas. Por isso, desta longínqua província do Império Romano,
soltava-se o mais lancinante grito que jamais tinha ecoado no Noroeste
Peninsular.
«Senatori Romani…senatori romani…»
Este digno
introito, dirigido aos senadores de Roma, não tinha nada de profético, se não
tivesse sido proclamado por Tito Lívio: «vai e anuncia aos Romanos que a
vontade dos Deuses é que a minha Roma se torne capital do mundo. Que eles
se tornem proficientes na arte militar e passem para os seus filhos que nenhum
poder na terra pode resistir às armas romanas» (Cf. Titus Livio, “ab urbe
condita”. Liber 1.16).
Todavia, a
locução de “senatori romani” se não era o retorno de alguma clemência
perante a cúria senatorial, tão do agrado da distinta assembleia romana, que
dos seus elogios gravitava na sua clemência, tornava-se, agora, uma forma de anátema
ou infâmia, que destemperava, no aval judicativo, os mais distintos e credíveis
tribunos.
Tinha chegado a hora de convocar todos os deuses romanos, todas as forças
ditas divindades católicas e apostólicas, todos os “delfos” perdidos pelos vândalos,
que através da história, marcaram a terra perdida desta longínqua província
romana. Através da língua da “Cidade Eterna” e da nova língua do poeta do
Lusíades, ressuscitavam-se dois impérios tão distintos que imbricavam na
jurisdição romana do poder, mas a cuja jurisdição a Roma competia. Nem a
autoridade papal, nem o sacrossanto império franco, destronavam a língua dos
poetas bucólicos romanos, que emergiam como murmúrios nas serenas águas do rio,
quiçá, desse rio do esquecimento. A sua natureza poética ressurgia dentro de
uma força abissal, que aos antigos mostrengos marítimos fazia relembrar. E, na
profundeza oratória arrastava-se pelos ares, num impulso, a palavra do jovem
orador. Como movimento de um moinho de vento rodopiava na sua língua romana:
«Senatori romani…senatori romani…»”
Ouvi, senadores romanos, onde está essa “Espanha cravada de metais, tais como: chumbo, ferro, cobre prata e ouro”, dizíeis, vós, na vossa língua: «Mettalis plumbi, ferri, aeris, argenti, auri, tota ferme Hispania scatet.».
Ouvi, senadores: onde está esse
rio, onde corria ouro e prata, que as vossas moedas faziam luzir?
Ouvi, senadores: onde estão os
vossos barcos, já que as legiões romanas deixaram vazio o leito deste rio?
Onde está o rasto e percurso da “via
per loca marítima”, cuja ponte jaz detrás desta minha montanha?
Onde estão as vossas quintas romanas
que se embelezavam com as duas ilhas do meu rio?
«Senatori…romani…senatori…»