As “Portas de Viana” estavam na antiga e íngreme entrada do lado Sul da fortaleza de Vila Nova de Cerveira, cujas pedras desapareceram em novas construções, a partir de 1845. Aliás, a praça de armas de Vila Nova de Cerveira tinha quatro portas de entrada. O «meio baluarte de Santa Cruz tinha como função de defender o lado sul da vila, vigiando a estrada de Viana, aliás, um dos principais acessos à fortaleza de Cerveira» (Cf/ Fortalezas). Poderíamos dizer que dela se estendia o empedramento de uma via, que de Caminha se esquecia, para se relembrar de Viana.
- "A rua que não era direita"
A oeste destas portas ficava outra porta de entrada na
fortaleza, que junto das águas do rio Minho constituía o cais de aportação, e, subia um
pouco e ladeava a antiga Casa da Alfândega, a chamada “Porta do Cais”, para não
dizer “Porta da Traição”. Os movimentos de gente ou mercadorias no cais eram
vigiados, na sua parte superior, pela casa dos homens de armas, mais tarde,
tornado "posto fiscal" da guarda republicana. Em seu redor da rua e da fortaleza erguiam-se as "casas
dos pescadores". Casas encostadas aos muros da fortaleza, lugares de habitação,
de amanho e conserto das redes: “porque pescador que se preze não mete mão em
corrimão, em arado ou lavoura”. O fruto do seu trabalho, quer de noite quer de
dia, era pescar e vender o peixe, e, depois fazer uma permuta pelos
produtos dos senhores e abastados lavradores. Honrados lavradores gostavam eles
de se intitularem, contra os profissionais do rio. A dura profissão de
pescador “de linha ou rede de pesca”, não era ser mareante, nem viajante de
mercadorias; era ser “vigilante do rio”, sempre à atalaia das águas e das
marés, dos ventos e do bom e mau tempo.
- Os vigilantes do rio
Do empedramento da via das “Portas de Viana”, pouco
resta, fosse ela romana, medieval ou ancestral, porque em seu redor rebentavam os verdes tufos de cebolas, de alhos e de couves, que alimentavam a "Rua dos Pescadores". À sabedoria das mulheres dos pescadores juntava-se o orgulho dos homens no
carinho das plantas. Por vezes, confundia-se esta atividade piscícola com a
insígnia de “ceboleiros”, epíteto, que em nada dignificava a labuta das varinas
ou peixeiras, e cujo maneio às mulheres pertencia na luta pela subsistência dos
seus lares. Eles não pertenciam à "Rua Direita", nem à” Porta da Vila” (entrada
principal), já que as corporações dos ferreiros, dos funileiros e latoeiros, que
batiam forte no latão, encaixaram-se na rua dos chamados “homens bons", e, «se
não eram artistas eram hábeis artífices». De ofício e mister firmado, cuja
mestria implicava anos de formação, presumiam-se distantes dessa classe de
pescadores, cuja bravura, por vezes, ninguém atura. Poi isso, as carvoarias
eram abastecidas pelas “Portas de Viana”, em ruas e becos mais sinistros, onde
o fumo e cheiro a peixe se misturavam nos seus eflúvios incandescentes.
Pelas “Portas de Viana” entrava a comitiva do “Zé do
Barraco”. A banda de músicos era pequena, mas o espalhafato era grande, tal era
a charanga: música dura, batida forte, apito agudo. O ribombar do bombo acompanhava
o latido estridente da gaita de foles, que mestre Zé exibia com ares de galhardia. O
acorde subia e descia, num ribombar intenso, conforme o eco dos muros da
fortaleza, e a charanga tocava, continuamente, sem perder qualquer fôlego.
Trocavam-se olhares quando o "comandante" vestido com um
casaco de peles de lobo, barba de “Pai Natal”. botas e plainas em pele de raposa,
soprava, na sua “gaita de foles”. Aqueles acordes agudos de uma melodia
intermitente, desatinavam em qualquer ouvido. Se na Grécia, Dionísio
desafiava os gregos com a sua música, as suas bacantes e ditirambos; em terras
pacíficas, de cervos e veados, despontavam amanheceres flauteados de música estridente
e bombos de batida sonora. O ranger da batida do bombo estoirava com pancada seca e forte, quando os ouvidos pretendiam calar os seus trinos. Insistia-se no
ribombar e malhar do bombo, até que o braço caísse lasso de tanto esforço. A frenética e
estridente melodia, que da cultura céltica tinha a sua origem, ecoava ondulante
e contente pelo ar, despertando toda a gente. Insensível a qualquer plateia, a comitiva seguia firme, enquanto o seu coro permanecia preso no magote de gente que
serenamente seguia os seus passos. Não se pretendia qualquer rendição de armas,
nem se exibia qualquer estandarte. Somente se queria deixar que a banda
passasse em tom estridente, acordando e despertando as mentes.
O fauno, o artista de música celta, adquiriu o nome de
“Zé do Barraco”, cujo batismo o povo conferiu, já que a sua aparição, em incerto
dia de nevoeiro, se revelou numa aparição de jangada em cima das águas do rio
Minho. Este humilde e aparente chefe de banda de música céltica chefiava um
grupo de gaiteiros que desafiam inocentemente as forças da lei, sem que
levantasse qualquer intimidação. Escondia-se o simples comandante e flautista na
força da música, com que exprimia a sua rebeldia. O seu inconformismo apelava a
zero de revoluções, e, a fartura de canções. Era música dura, batida forte, apito
agudo, que uma flauta celta despertava com a sua estridente natureza. Se não era “flauta
mágica”, ou, “flauta encantadora”, era a força de "gaita de foles" que gritava de
forma demolidora. A música da fanfarra fugia ao entendimento popular, afastava-se
da música tradicional, e, deambulava em sonoridades celtas, cujos memórias se tinham
esquecidas.
- A musa do “Zé do Barraco”
Mas, das “Portas de Viana” vinha o cheirinho do peixe frito que lhe adoçava o olfato, que ele temperava com o pequeno odre ou cabaça de vinho, que fazia parte da bagagem da comitiva. De vez em quando, um pequeno descanso impunha-se como pausa musical, ou, retiro espiritual. A “gaita de foles”, o bombo, a pandeireta, e os ferrinhos, quando muito acelerados no seu movimento, ribombavam com estrondo pelas paredes da fortaleza, cujo eco estrelava sonoro e estridente, despertando qualquer doente ou paciente. Poisava as suas vestimentas, e, qualquer petisco que viesse matar a fome, ou, sofreguidão, deitava-se-lhe a mão. Nestes intervalos musicais, havia uma paragem que se tornava obrigatória. A meio do percurso, na curva da estrada nacional, junto ao nicho das “Alminhas do Pedroso”, de cujo pequeno outeiro se deixava ver o rio, perdia-se sem ninguém saber o coração do “Zé do Barraco”. Enfeitiçado pela musa, que do outro lado da estrada, por vezes, o contemplava, enquanto ele estendia o seu olhar na tentativa de avistá-la. Aqueles lábios vermelhos, mais vermelhos que uma rubra rosa, acendiam-se como uma chama, repleta de pudor. O seu nome era Rosa. Dama, senhora, poetisa, e, sobretudo, mulher do "governador da comarca", guardava-se a distância e o respeito, que ela merecia. Porque quem manda é quem mais governa, e o governador era homem do poder, do qual tanto ele distorcia. Por isso, a poetisa feita musa segredava-lhe:
Naquela rosa que ninguém plantou
Dela cresceram versos aos molhos
em música e poemas do que sou».
Alguns conservadores e tradicionalistas, abespinhados pela
fanfarra do “Zé do Barraco” queixavam-se junto da Comarca, mas a dama
intercedia junto do marido. Um pacto silencioso selava as suas confidências, que escapavam a qualquer burburinho exterior. Somente os corvos que grasnavam no topo das ilha da Boega participavam destas confidências. E, sobretudo, os dois corvos de Odín, cujas voltas ao mundo, a mitologia desvendava nas sagas e seus poemas. Os arcanos segredos que as musas desvendam somente aos músicos e poetas que ousam enfrentar o castigo dos segredos roubados aos deuses. Por isso, aquele sorriso zombeteiro e matreiro deste músico celta, cuja
tonalidade ninguém entendia, orgulhava-se de se exibir a pena que em si carregava, em pleno terreiro.
Dentro do seu peito conservava os finos sentimentos da sua protetora:
Nos teus versos, o meu olhar manhoso
Deixa-te sorrisos, na curva da via».
Obs: Poetisa Rosa Varela: "Alminhas do Pedroso" (+ 26.09.1968)
N.B. «Por vezes, o intelectual notável é o homem comum, aquele que não possui o que designaríamos como uma voz profissional. Estes homens e estas mulheres podem não ter consciência (habitualmente não têm) do papel que desempenham, são pessoas comuns que se manifestam a partir de um núcleo ético, naturalmente testemunhas críticas do seu tempo» (cf. Alberto Manguel, Revista Expresso, 19.09.2020).
P.S. Descrição do Zé do Barraco por José Alves:
«Os
gemidos de uma Gaita de Foles Galega, o tilintar de ferrinhos, abafados pelo
ribombar dos tambores.
E quem
haveria de ser? O tio Zé do Barraco, pois já se vê! Lá vinha ele, à frente da
sua comitiva, vestido de peles, o rosto bem delineado de feições regulares,
favorável ao artista pintor para o retratar coberto por uma espessa barba
comprida que lhe caía sobre o peito e que ao mesmo tempo lhe conferia o ar de
um verdadeiro ancião. Sobre a nuca sobressaía-lhe a cabeça de um lobo com a
boca aberta e que lhe servia de carapuça. Envergava um casacão que lhe caía até
aos pés por ele confecionado com a pele daquele animal. (O Tio Zé do Barraco de
carácter misterioso e por vezes estranho a avaliar pela sua indumentária para
além das várias ocupações que tinha, também era alfaiate). Atrás, pendia-lhe a
cauda felpuda do dito predador ibérico, que ele fazia passar para a frente por
entre as pernas e a agitava com gestos brincalhões e brejeiros aos que o
desafiavam para a folia. Calçava uns tamancos rústicos totalmente em madeira
que ele mesmo fabricara. Empunhava sempre que saía para as suas rusgas, um
estranho instrumento também por ele engendrado em madeira, munido de uns fios
de arame esticados e sobre os quais ele manuseava e fazia roçar em movimentos
de trás para diante e vice-versa, um pequeno cordão feito de fios de arame
torcidos uns sobre os outros, batendo ao mesmo tempo com ele no solo,
produzindo um som tão estranho quanto o era o próprio instrumento».
Cf. . José Alves - Cerveira Nova.