O "Cónego de Braga" filho do Governador de Piauí. |
João Crisóstomo Guerreiro de Amorim Pereira, filho
de João de Amorim Pereira e D. Ana Maria Guerreiro (Rocha), (dado como nato em “São
Martinho” de Lanhelas, apresenta, em nossa opinião, um equívoco com o lugar vizinho
de Gouvim, em Gondarém, berço tradicional da família), cujos irmãos se
notabilizaram como “altos funcionários do Reino”, enveredou pela carreira
eclesiástica, conforme rezam estes dados na sua “inquirição de genere”. Cf.
(Arq. Distrital de Braga, 01.04. 1780).
Os inquéritos “de genere” eram «processos
necessários para a ordenação dos párocos. Consistem na inquirição de
testemunhas para comprovar a filiação, reputação, bom nome ou “limpeza de
sangue” do requerente. Incluem os seguintes documentos: requerimento inicial,
carta de comissão, inquirição de genere a testemunhas e declarações dos
párocos. Estão incluídos nesta série processos de Justificação de Fraternidade
que são requeridos quando há, na família, alguém ordenado e com inquirição de
genere elaborada e concluída”, (1616 /1911). Cf. (Arq. Distrital de Braga).
Nato no seio de uma família tradicionalmente católica, de onde saíram vários candidatos ao sacerdócio, quase nada obstava a que atingisse o fim almejado. Além disso, vindo de uma família abastada, e, com reputação social, não se configurava um simples lugar em qualquer paróquia abandonada. Por isso, a sua ascendência e o bom nome familiar abriram-lhe o caminho para a categoria de cónego, sem qualquer ofício determinado na Cúria de Braga. Esta classe ou categoria de clérigo associava-se ao conforto espiritual no seio da família, ou, ao empenho pessoal noutras tarefas particulares de ensino e educação, embora dependente da Cúria de Braga. Por isso, uma das tarefas encontradas associa-se à “escola de latim” em Gouvim. Este isolamento das funções clericais suscitava alguma apreensão, como se evidenciava com a polémica do abade de Gondarém.
Dois galos na mesma capoeira
Por volta de 1820, o abade de Gondarém não se
coíbe em divulgar que este clérigo «se encontrava excomungado», apesar
do cargo de cónego, e, que permanecia acoitado na encosta, ou, “casas” de Gouvim,
na freguesia de Gondarém. Perante este insulto, que «se prende com injúria»,
o abade da freguesia de Gondarém, António Pedro Pacheco, foi parar ao “mocho”
do Tribunal da Comarca de Caminha. Cf. (Arq. Nacional da Torre do Tombo).
«Em
casas de seu irmão, João Manuel Guerreiro Amorim, desembargador da Suplicação»
permanecia este clérigo, quando se faz referência. aos “autos de visita ao oratório
particular a favor de João Crisóstomo Guerreiro de Amorim». No entanto, «para
ter oratório particular» «obteve breve apostólico», ou seja,
uma espécie de bula que lhe concedia esta prerrogativa, «tanto no
Patriarcado de Lisboa, como neste Arcebispado”. Cf. (Arq. Distrital de
Braga, 23.11. 1819).
Ora, um “breve apostólico” é uma espécie de documento que confere alguma “bênção” ou “graça” especial, que se estende ao próprio, ou, a qualquer suplicante, cujo despacho confirma tal concessão. Esta prerrogativa podia conduzir ao tratamento pessoal de “monsenhor”. Acresce-se, ainda, que a especificidade de “oratório particular”, ou, “local privado de oração” configurava um pequeno ermitério, ou, capela que não suscitava a admiração do abade Gondarém. Aliás, o título de "breve" era condição necessária e suficiente para poder celebrar missa, num oratório particular. Reza assim, o respetivo documento: «para ter oratório particular, tanto do Patriarcado de Lisboa, como neste Arcebispado, cuja graça se estendeu também ao suplicante, como se vê no despacho junto…». Cf. (Arq. Distrital de Braga, 23.11.1819)
Os “oratórios particulares”, ou, “domésticos”
tornaram-se muito difundidos no Século XVIII: símbolo de pessoas nobres, fidalgos, titulares do Reino, ricos e tementes a Deus, além de serem beneméritos da Igreja. As famílias mais ricas começaram
a ter os seus altares particulares, (aliás, cuja tradição, bastante antiga, remonta aos costumes dos lares romanos), mas que, na fé cristã, também é fruto das caravelas portuguesas que
levavam os seus oratórios. Os homens do período colonial espalharam-nos pelas
suas fazendas, ou, locais de capitania, de onde descende o cónego, a nível paterno.
Estes nichos ou armários continham imagens de santos ou padroeiros, que faziam parte
da devoção da família. Propícios ao recolhimento e oração, apesar da sua devoção
em ambiente privado, abriam caminho para "celebrar missa, realizar
casamentos, ou, batizar crianças". Todavia, este clérigo fazia parte do conjunto de cónegos que formavam o “cabido”, ou, a "Cúria de Braga" , e, por isso, estava desligado destas funções.
Estas funções religiosas estavam reservadas ao
papel da paróquia, de forma que o Padre João Crisóstomo Guerreiro de Amorim Pereira
enveredou pelo ensino da gramática latina e do grego, instruindo os candidatos
à carreira religiosa. Entre os anos de 1827 e 1835, a Cúria de Braga
encontra-se em “sede vacante”, mas tendo como “administrador apostólico” Manuel
Pires de Azevedo Loureiro. Como órgão
colegial, alvitra-se que o cónego João Crisóstomo Guerreiro Amorim Pereira tenha
desempenhado funções de “Cónego de Braga”, de onde lhe vem este epíteto,
popularmente atribuído. A crise dinástica do Reino de Portugal, entre 20 de março
de 1826 a 27 de junho de 1832, não favoreceu a nomeação de um bispo para Braga; posto
isso, oficialmente, não aparece o nome deste propalado “Cónego”.
Todavia, através dos seus rendimentos, quer
de bens familiares, quer da sua atividade clerical, torna-se senhor da “Quinta
do Outeiral”. A edificação ao lado do Paço, nesta casa senhorial, ou seja, a dita
casa do “feitor”, atribui-se às obras efetuadas por este Cónego. À intenção da
compra e posse desta quinta juntava-se a vontade de que alguém zelasse pelos cuidados
da sua saúde, nos últimos dias da sua vida. Ora, o cónego de Braga tinha conhecimento
de que um rico “brasileiro” de “São Mamede de Ferreira”, da comarca de Paredes
de Coura, pretendia encontrar uma moça prendada para seu casamento. Assim, unindo a sabedoria à astúcia, acalentou
o melhor meio de fazer um casamento prendado para a sua estimada sobrinha, com
a condição de zelar pelo seu futuro.
Um papagaio e duas cotovias
O feliz e venturoso António Joaquim Fernandes Lima deixou Paredes de Coura para se casar com a sobrinha do Cónego; mas, rapidamente surgiram as desavenças e conflitos com este clérigo. A juntar-se à discórdia entre ambos, surge a morte prematura da sobrinha do Cónego. Uma vez que existia uma doação de bens, feita à sobrinha, e, por causa da morte desta, o “brasileiro” Lima desalojou o Cónego dos seus bens e propriedade, remetendo-o para casa das suas irmãs, na vizinha freguesia de Loivo.
Quis o destino e a praga do infortúnio ou
azar, que as vozes das saudosas irmãs se juntassem em “uníssono coro” de duas
maviosas cotovias que desafiavam à porfia contra o antigo orador, pregador, ou,
clérigo que não passava de um papagaio arrependido, sendo ele "boca de oiro", ou, "Crisóstomo". A “reforma dourada” do
Cónego foi substituída pela caridade das irmãs, que cheias de pena e compaixão,
o acolheram e lhe deram guarida fraternal, sem nunca lhe perdoar o mal. Por bastante
tempo perdurou, popularmente, a “Quinta do Lima”. Mas, a 5 de outubro de 1855, desapareceu
o famigerado “Cónego de Braga”, em terras da “Quinta da Torre”, na freguesia de
Loivo. A desdita, “por mor de bem casar uma sobrinha” inspirou o poeta
Pedro Homem de Melo, que mais tarde brindou Gondarém, com o poema:
«Por mor de aprender o vira.
Fui traído. Mas por fim,
Sei hoje, que era a mentira.” (no fado “Vim
morrer a Gondarém”).
Obs:
«Autos de visita ao oratório do Padre João Crisóstomo Guerreiro de Amorim, assistente na freguesia de São Pedro de Gondarém, concelho de Vila Nova de Cerveira, em casas de seu irmão, João Manuel Guerreiro de Amorim Pereira, desembargador da Suplicação, que ele obteve breve apostólico, para ter oratório particular, tanto no Patriarcado de Lisboa, como neste Arcebispado, cuja graça se estendeu também ao suplicante, como se vê no despacho junto....» Cf. (Arq, Distrital de Braga, 13.11,1819).
Vide: Diário do Minho, 08 fevereiro de 2015.
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