Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de que somos
E os gestos reais que temos
São aqui esgares e assomos.
Tudo é noturno e confuso
No que entre nós aqui há
Projeções, fumo difuso
Do lume que brilha oclulso
Ao olhar que a vida dá.
Estas duas quintilhas poéticas tendem a demonstrar que Fernando Pessoa conhecia bem a filosofia de Platão. Embora, João Gaspar Simões advogue que “contém em síntese o essencial do pensamento ocultista de Fernando Pessoa” (pg.54). O poema expressa, poeticamente, a divisão de dois mundos platónicos, cujo pano de fundo é iluminado pelo reflexo de uma luz, imagem, ou seja, a fogueira da “Alegoria da Caverna”.
Na primeira quintilha, Fernando Pessoa destaca o universo
platónico na sua dualidade de mundo inteligível e mundo sensível, em que está
envolvida a teoria da reminiscência, com a sua ideia de recordação e
esquecimento. O obstáculo do corpo, ou seja, o mundo sensível e dos sentidos
sobrepõe-se ao mundo da alma e das ideias, de tal modo que nós, somente somos
sombras imperfeitas daquilo já contemplámos, e, que agora esquecemos.
Na segunda quintilha evidencia-se a “Alegoria da Caverna” de
Platão, em que a condição de agrilhoados ao mundo sensível, somente nos permite
visionar a confusão da noite em que estamos imersos. Mas, através da “figura da
fogueira”, ou seja, do reflexo da imagem e da sua projeção, algo transparece na
pouca luz que nos pretende iluminar. No entanto, navegamos na sua escuridão.
No entanto,
Fernando Pessoa não fica preso a estas certezas filosóficas, e demarca-se da mundividência
platónica. Procura encontrar ou desvendar um caminho para esta dualidade filosófica, construindo uma
estratégia poética ou estética.
Mas um ou outro, um momento
Olhando bem, pode ver
Na sombra o seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz
viver.
E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarrar;
E volve ao seu corpo ido
Imaginado e entendido
A intuição de um olhar
João Gaspar Simões chama a esta estratégia um «“caminho alquímico” – a via mais segura para a comunicação com o Ente Supremo» (pg.56) ” É consabido, na história da filosofia, que entre Parménides e Heráclito, Platão optou pela essência daquilo do que é, pela permanência do ser. Fernando Pessoa, em vez de se fixar em Parménides procuram ansiosamente o mundo de Heráclito. É preciso” encontrar um sentido” que na “sombra do movimento” nos forneça a “intuição do olhar”. E, aqui, Fernando Pessoa aproxima-se da “porta da eternidade”, que emerge com a figura do “clin d’oiel”” em Kierkegaard. (Aliás, outra figura paradigmática da heteronomia). Abrindo-se ao futuro, imprimindo-se no movimento, procura encontrar um sentido, quase renegando a anterior reminiscência, na tentativa de desvendar o oculto que a “intuição de um olhar”, tende a revelar, na sua possível inteligibilidade. Na nossa opinião, João Gaspar Simões fecha-se exclusivamente num ocultismo estético, próprio do seu “instinto de poeta”.
Achamos que o poeta deseja lançarmo-nos no movimento do
mundo, do encontro ao «chão do tempo e do espaço», para destrinçarmos a mentira
e a verdade como descoberta (como Alêtheia).
Sombra do corpo saudosa
Mentira que sente o laço
Que liga à maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.
A verdade está no movimento do “chão do tempo e do espaço” e,
sobretudo, está no mundo da tua mão.
N.B. (pg. 54 e 56) - SIMÕES, João Gapar "Fernando PESSOA" - ensaio interpretativo da sua Vida e Obra - Ed. Texto Editores e Edições Expresso, Lisboa 2011.
P.S. Nas suas reflexões de Agosto-Setembro de 1973, em Luchon - Nice, Eduardo Lourenço afirma que este poema "é de 1934" (Cf. pg. 191). Na esteira de João Gaspar Simões, Ed.Lourenço prossegue na «visão oculta» e no «drama de gente», dentro da estrita linha da hermenêutica literária, caminhando na aposta de "duas almas" e no seu "laço dialético". Assim, deste modo, quase finaliza Ed.Lourenço, «...neste poema e em todos onde a visão ocultista está presente se oferece um espaço de paz imaginário e de transcendente salvação» (Cf. pg. 192). A nossa perspectiva é bastante diferente e procura afirmar que a gnoseologia de Platão está imanente à poesia de Fernando Pessoa, com outra "porta de saída" (o movimento).
LOURENÇO, Eduardio, "Pessoa Revisitado", Edições Gradiva, 3.º Ed. (cf. 1.º Edição), Lisboa 2000.
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