Era uma das últimas desfolhadas comunitárias que se realizava na Casa do
Seixo. Mais conhecida como “Casa do Mirante”, o seu mestre de cerimónias,
caseiro e lavrador, era Mestre Benigno, mais associado ao “homem da
concertina”. Mais rápido nas teclas, que na contagem do grão, deliciava-se
pelo alvoroço que o “milho-rei”, ou a “espiga rainha” despertava, não na
apanha da maçaroca, mas em abafados abraços dos rapazes sobre o mulherio.
Alegria, que os jovens faunos não desperdiçavam nesta e única oportunidade
de abraçar as púdicas donzelas, que zelosos olhos paternais protegiam da
sua cupidez. A tal ponto, que Camilo Castelo Branco lhes chama: as
"funçanatas desfolhadas". (1)
Assim, gritava-se com toda a força: –
“Olha a rainha!...vem cá, que, tu és minha». Subitamente, rebolava um repentino abraço,
que selava, avidamente, este grito tão procurado.
A espiga rainha era “vermelha”, também conhecida como “milho rei”, na
região das Beiras. Esta espiga de milho era mais famosa pelos seus
quentes abraços, do que pela sua cor de vermelho rubi. A espiga
“rainha” brilhava em candentes abraços, que nas noites de luar, se
desprendiam de encontro aos seios de puras e frágeis donzelas,
cuja timidez se enchia de rubro pudor. Por vezes, as senhoras
também se envolviam em inquietos e inesperados amplexos, que logo
desdenhavam em renovado clamor, abafando qualquer suspeita mais
maliciosa.
A desfolhada, ou seja, a reunião de trabalho agrícola, tinha sido
convocada de antemão, e, não suscitava qualquer vigilância por parte
da guarda republicana, que por imposição ou denúncia, por vezes,
irrompia nos bailes organizados por gente jovem e fogosa.
Desconfiava-se que estas ordens surgiam a mando de um cura zeloso, que
tinha abolido as festas da terra. (Bailes eram sinónimo de tentações,
de inferno e pecado. E, nesta “comunhão de ideias”, o diabo devia
permanecer bem longe). Mestre Benigno, o “homem da concertina”, andava
escaldado com as multas da GNR, cujas taxas recaíam sobre si, e,
diminuíam o seu pequeno pecúlio. Por isso, timidamente, esboçava
alguns acordes na sua concertina, que eram acompanhados por uma música
de "cantochão", apesar das desfolhadas terem grande tradição de
animação e alegria:
“Vai-te lavar morena.
Vai-te lavar
Se não te chega o rio
Vai-te lavar ao mar»
Esta clerical censura obrigava a nada de bailaricos, a nada de danças
de “gota” ou do “vira”, nem, quaisquer recordações de folclore que,
afortunadamente, estava reservado para os estúdios da RTP no Monte da
Virgem, em Vila Nova de Gaia, onde o “homem da concertina", sob o
comando de Pedro Homem de Melo, se exibia com o famoso quarteto da
“Gota” de Gondarém. Neste momento, o “homem da concertina” estava mais
preocupado com qualquer possível desmando de algum fauno,
mal-intencionado, que estragasse a festa da desfolhada. A merenda
noturna de pão, vinho e chouriço abafaria qualquer destempero
ocasional. Canta, mais tarde, Zeca Afonso, no final da sua canção:
«Não olhais para o caminho
Que a merenda já lá vem»
«Milho verde, milho verde
Milho verde maçaroca
À sombra do milho verde
Namorei uma cachopa».
Assim, a espiga está dentro da maçaroca; e, desfolhar é tirar o
folhelho, ou, a cobertura que envolve a espiga de milho. Certamente,
que o “homem da concertina” desconhecia a história desta capela. Mas a
camisa que o padroeiro vestia, era o símbolo do “homem da concertina”,
tão doce e sereno era o seu nome, não fosse ele “Benigno”.
(1) Obs: Camilo Castelo Branco, Novelas do Minho, pg. 16, Ed.
Expresso, Lisboa 2016.
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